domingo, dezembro 16, 2007

Natal


Hoje é dia de Natal.
O jornal fala dos pobres
em letras grandes e pretas,
traz versos e historietas
e desenhos bonitinhos,
e traz retratos também
dos bodos, bodos e bodos,
em casa de gente bem.

Hoje é dia de Natal.
- Mas quando será de todos?


Sidónio Muralha

Porque, na verdade, só quando for de todos, fará sentido celebrar o Natal de Cristo.



Feliz Natal para todos os que aqui passam!

terça-feira, dezembro 11, 2007

Tempo de cinza


Tempo de cinza
de andorinhas indecisas nos meus dedos,
como o sol que corre baixo no horizonte,
e o orvalho que teima em não secar.

Jamais soltarei o voo das aves,
libertarei sua alegria, os seus volteios,
porque esta cinza nos transforma em prisioneiros
que a luz do Inverno está à beira
de enregelar.

Tempo de cinza,
nuvens baixas no poente,
que dor difusa, latejante ou permanente,
impedirá as minhas aves
de voar?

Manuel Filipe

Com as asas coladas ao corpo. Pela cinza que nos cai dos dedos, quando a esperança se desfaz.

terça-feira, dezembro 04, 2007

de gaivotas o grito


I
de gaivotas o grito
entre rumores e ondas
ave te escuto
ignorada e lenta
tão veloz passar
que nunca pousa

II
no silêncio posterior
a mágoa inerte
de quem o espesso
ar apodrece

III
cinza entre
dois fogos
sol tão denso
sobre a respiração
do corpo
esvoaçar nocturno
pelo vagaroso frio
as palavras rondam
e onde se me negam



Alberto Carneiro

Tão veloz passar. Como tudo o que se me nega. Vagaroso frio. Frio.

sábado, dezembro 01, 2007

Inventário



não sei de aranhas
nem de fios
sei de teias

não sei de pássaros
tampouco de borboletas
sei de voos

sei de vertigens e abismos
de asas partidas
de mãos vazias de gestos

(de ausência de versos)

e sei também de dor e desamor
mas isso fica para
outro poema.

Márcia Maia


quando as mãos ficam vazias de gestos, espreitamos fundo os abismos da alma.

quarta-feira, novembro 28, 2007

Do nome


Diz-me o teu nome - agora, que perdi
quase tudo, um nome pode ser o princípio
de alguma coisa. Escreve-o na minha mão

com os teus dedos - como as poeiras se
escrevem, irrequietas, nos caminhos e os
lobos mancham o lençol da neve com os
sinais da sua fome. Sopra-mo no ouvido,

como a levares as palavras de um livro para
dentro de outro - assim conquista o vento
o tímpano das grutas e entra o bafo do verão
na casa fria. E, antes de partires, pousa-o

nos meus lábios devagar: é um poema
açucarado que se derrete na boca e arde
como a primeira menta da infância.

Ninguém esquece um corpo que teve
nos braços um segundo - um nome sim.

Maria do Rosário Pedreira



Sei o nome que dizes ter. Queria guardar o nome do interior de ti.

domingo, novembro 25, 2007

Ver é estar distante



De repente estou só no mundo. Vejo tudo isto do alto de um telhado espiritual. Estou só no mundo. Ver é estar distante. Ver claro é parar. Analisar é ser estrangeiro. Toda a gente passa sem roçar por mim. Tenho só ar à minha volta. Sinto-me tão isolado que sinto a distância entre mim e o meu fato. Sou uma criança, com uma palmatória mal acesa, que atravessa, de camisa de noite, uma grande casa deserta. Vivem sombras que me cercam - só sombras, filhas dos móveis hirtos e da luz que me acompanha. Elas me rondam aqui ao sol, mas são gente.


Bernardo Soares


Só ar. Como um sopro. Por vezes as sombras até são bem vindas.

quinta-feira, novembro 22, 2007

Do amor



Esta vista de mar, solitariamente,
dói-me. Apenas dois sóis, duas luas
me dariam riso e bálsamo.
A arte da natureza pede
o amor em dois olhares.

Fiama Hasse Pais Brandão




Solitariamente. Sem riso. Mas o mar é o (e)terno bálsamo.


segunda-feira, novembro 19, 2007

sangue dentro e meu


levanta-se no ar
como fio de nuvens
ampla extensão
de extenuado vigor
vapor tão ofegante
sangue dentro e meu
cravado nos braços da terra
ave transparente
que de tão no ar expandida
de mim se afasta
de si mesmo liberta

Alberto Carneiro

Pudesse eu libertar-me de mim mesma! Expandir-me no ar e esquecer o que me liga à terra!

sexta-feira, novembro 16, 2007

Lágrimas e sorrisos


minhas trevas me perseguem
às vezes vão à minha frente

tão disformes quanto eu mesmo
as flores nos ensinam:

miram a luz, e não
suas próprias sombras...

Alceu Brito Correa


Ainda contemplo as sombras que caminham comigo. Vou olhar mais as flores na beira do caminho.