sábado, outubro 04, 2008

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terça-feira, setembro 30, 2008

Lembra-te


Lembra-te
que todos os momentos
que nos coroaram
todas as estradas
radiosas que abrimos
irão achando sem fim
seu ansioso lugar
seu botão de florir
o horizonte
e que dessa procura
extenuante e precisa
não teremos sinal
senão o de saber
que irá por onde fomos
um para o outro
vividos

Mário Cesariny

sexta-feira, setembro 26, 2008

Mamma Mia!

Ninguém, intelectualmente credível, gosta dos ABBA (verdade?). Eu nunca admitirei que até existem algumas canções que... NUNCA! Deve ser por isso que eles venderam e vendem, ainda, tantos discos. Ficando então claro que NÃO gosto dos ABBA (credo!), confesso que fui OBRIGADA a ir ver o filme Mamma Mia, adaptado do musical do mesmo nome. Há cerca de uma semana... E, dano colateral do filme, todos os dias acordo com uma canção diferente a buzinar-me os ouvidos. E não é que me foge o pezinho para a dança?

Vem aí o fim de semana. A silly season acabou, mas podemos fingir que não. E ver uma das mais hilariantes e bem conseguidas sequências deste filme absolutamente silly, kitsch, e onde brilha uma grande senhora que não se importa de admitir que gosta dos ABBA e se diverte à grande no filme: Meryl Streep.


segunda-feira, setembro 22, 2008

Porque em mim há sempre gaivotas


Eu tenho sempre Gaivotas
Do pensamento ao desejo
Que chegam em cada abraço,
Que partem em cada beijo,
Eu tenho sempre Gaivotas
Do pensamento ao desejo!



Eu trago sempre Gaivotas
Neste céu onde eu existo,
Gaivotas de dor profunda,
Dessa dor de que me visto,
Eu trago sempre Gaivotas
Neste céu onde eu existo!



Em mim há sempre Gaivotas
Em bandos, como pardais,
Gaivotas de Liberdade,
Morrem muitas, nascem mais;
Em mim há sempre Gaivotas,
Em bandos, como os pardais!
Que eu, tenho sempre Gaivotas
Do pensamento ao desejo,
Que partem em cada abraço,
Que chegam em cada beijo,
Que nascem no Coração,
Levantam voo da mente,
Gaivotas feitas futuro
E passado e presente,
Gaivotas de todo o Amor,
De sorriso, de partida,
Gaivotas feitas de morte,
De saudade e despedida;
Que ser Gaivota é ser forte,
É ser Livre para Amar,
É ser Livre de partir,
É ser Livre de chegar,
Livremente viajando
Nas vagas de cada olhar;
E, porque me perco no tempo
Por no tempo andar perdida,
Por isso é que há Gaivotas
Dentro de mim, por toda a VIDA!...


Maria Mamede, in Pelas Letras do Alfabeto

quarta-feira, setembro 17, 2008

Do sorriso


já alguma vez te disse
de quanto o teu sorriso me evoca a luz clara da alvorada?


não os poentes ocidentais
de amarelos pintados nas fachadas do casario
mas a serena luz
clara e fria das manhãs
que nos sulca a face
com a claridade azul de uma lágrima
e abre o peito à vida remoçada


entenderás agora
porque me afasto de ti
o justo espaço
do receio
de não caber dentro de mim
tanta luz
tanta ansiedade
este temor de romper
a solidão que me conforta?





Jorge Castro, in "Contra a Corrente"

domingo, setembro 14, 2008

É



Pensei conhecer as sombras pelos nomes,
especialmente, os das sombras das esquinas,
e todos os nomes,
todas as sombras,
todas as esquinas,
quis conhecer.
Pensei conhecer as nuvens pelos nomes,
mas, fundamentalmente, o nome de cada esquina,
e todos os nomes,
todas as nuvens,
todas as esquinas,
quis conhecer.
Penso já conhecer as nuvens, pela sombra,
mas não, seguramente, as esquinas de cada nome.



Manuel Filipe in “ Nas palmas da noite”

quinta-feira, agosto 28, 2008

Faz-me o favor


Faz-me o favor de não dizer absolutamente nada!
Supor o que dirá
Tua boca velada
É ouvir-te já.


É ouvir-te melhor
Do que o dirias.
O que és não vem à flor
Das caras e dos dias.


Tu és melhor -- muito melhor!--
Do que tu.
Não digas nada. Sê
Alma do corpo nu
Que do espelho se vê.



Mário Cesariny




[Deixo-vos até meados de Setembro com Cesariny e umas flores cor de melancolia. Beijos e abraços a todos ]

sábado, agosto 23, 2008

Explicação


O pensamento é triste; o amor insuficiente;
e eu quero sempre mais do que vem nos milagres.
Deixo que a terra me sustente:
guardo o resto para mais tarde.

Deus não fala comigo - e eu sei que me conhece.
A antigos ventos dei as lágrimas que tinha.
A estrela sobe, a estrela desce...
- espero a minha própria vinda.

(Navego pela memória
sem margens.

Alguém conta a minha história
e alguém mata os personagens.)


Cecília Meireles



segunda-feira, agosto 18, 2008

Fechei o sol




Fechei o sol no meu quarto
de paredes limpas, imaculadas e discreto,
mas, a toda a volta, cresceu um vazio preto.

A esta gloriosa exposição eu me submeto:
-Falo com os botões, em contra-luz, e olho o tecto,
até ficar farto.

A noite cai agora, mansamente.
Abro a porta ao vento livre, do deserto,
para que entrem sombras e silêncios insolentes.

Manuel Filipe

sexta-feira, agosto 01, 2008

Surdo, subterrâneo rio


Surdo, subterrâneo rio de palavras
me corre lento pelo corpo todo;
amor sem margens onde a lua rompe
e nimba de luar o próprio lodo.

Correr do tempo ou só rumor do frio
onde o amor se perde e a razão de amar
--- surdo, subterrâneo, impiedoso rio,
para onde vais, sem eu poder ficar?

Eugénio de Andrade

[Deixo-vos durante cerca de quinze dias em boa companhia. Boas férias!]

segunda-feira, julho 28, 2008

O guarda-chuva


Nas manhãs de Inverno
o homem transpunha a porta
e, sob a asa negra do guarda-chuva,
transportava a solidão.

No comboio,
ela entrava de roldão
e em cada rosto se estampava;
no trabalho,
por onde passeasse a sua vida morta,
a solidão medrava.

À noite, apenas regressado,
fechava a asa,
e deixava de novo a solidão
à solta,
pela casa.


Manuel Filipe, in Nas Palmas da Noite

terça-feira, julho 22, 2008

Abrigo


Abrigo-me de ti
de mim não sei
há dias em que fujo
e que me evado

há horas em que a raiva
não sequei
nem a inveja rasguei
ou a desfaço

Há dias em que nego
e outros onde nasço

há dias só de fogo
e outros tão rasgados

Aqueles onde habito com tantos
dias vagos.


Maria Teresa Horta

quinta-feira, julho 17, 2008

Guarda a manhã


Guarda a manhã
Tudo o mais se pode tresmalhar

Porque tu és o meio da manhã
O ponto mais alto da luz
Em explosão

Daniel Faria

domingo, julho 13, 2008

Saudades




Tenho saudades hoje
De coisas simples

Um bocado de corda p´ra saltar
Dois berlindes
Um aro de bicicleta e um ferro
Um carro de linhas, sabão, elástico
Um prego grande
Uma meia velha cheia de trapos
Um grão-de-bico um pedacinho de tecido
Um biscoito frito
O doce na côdea humedecida na boca
Uma fita vermelha no pescoço

Hoje tenho saudades dessas e doutras
Simples… simples coisas

Um cabelo entrançado em duas
Um bibe branco…a mala de cartão
O cheiro de borracha e tinta
O quadro de artista plástico
Num mata-borrão
E no papel dobrado em dois
As formas fabulosas dum borrão

Hoje as saudades crescem-me
Saudades de coisas simples
As coisas afinal que me deste…vida

O cheiro que a terra tinha então
O sabor diferente em cada fruto
Joelhos esfolados lambidos a cuspo
A cópia rigorosa da caligrafia
A caneta de aparo
O tinteiro de loiça no buraco
O beijo trocado no banco do quintal
A cama de ferro de lençóis de linho
A palha solta do colchão riscado
Aquela tarde que não acabava
O verde mais verde que havia num prado

Hoje, nem eu sei…
Ficou-me uma saudade…

Do mar que era de cheiro intenso
Das covas de areia até ficar tapado
A bicicleta com dois, três e quatro
E a lama…a terra suja no vestido
E o vento molhando de maresia
E a chuva trespassando a alma
E os rios que corriam devagar
E os rios sempre quase parados

Hoje, se continuo assim escrevendo
Hoje rebento de saudades


terça-feira, julho 08, 2008

Penélope



Talvez o olhar negro e animal
que se afunda,
ressuscita, em cada vaga,
talvez o cão, o arco, a aljava,
- guardiães inúteis da cal -
reconheçam minha mão,
talvez um beijo...

Talvez agora desfaças o novelo,
no qual enrolas,
desenrolas,
o desejo.

Manuel Filipe

quarta-feira, julho 02, 2008

a carta








enquanto a carta permanece fechada,
todas as notícias são possíveis;
todas as esperanças, legítimas


tu és a carta
eu sou o destino
tu és o medo
eu sou a trincheira
tão densas são as palavras
tão dura é a verdade
que nos perdemos há tanto
na última cedilha
no último acento
sem sentido

chora o vazio
dor
é mesmo dor o que sinto

na encruzilhada
emaranhada e traiçoeira dos escritos
jorram os sons aflitos
da falta de rumo
dos ventos contrários
perdidos na sedução adiada
perdidos na sedução adiada
nesta tentação de não deitar contas à vida
nesta vocação desesperada para o pior de tudo

lembras-te da última carta?
estava vazia!
sei-o eu
sabe-lo tu
sabem-no todos os homens que se despenham
verticalmente
no fundo azul de um envelope distante
verticalmente
como quem se suicida impunemente
na sede do mar
que se sorve
adiada
em cada linha em branco deixada por escrever

sabe-lo tu
e sei-o eu
mas as linhas do teu corpo
só eu as leio

só eu as leio

Jorge Casimiro

sexta-feira, junho 27, 2008

desobrigação



abro mão da obrigação
de ser feliz na sexta-feira
à noite

de sair copo a copo
corpo a corpo
bar em bar

basta-me um pouco
de quietude de
silêncio

o balanço da cadeira
na penumbra da
varanda

(copo de vinho solo
de jazz quinteto de
mozart)

a noite azul qualquer
estrela alguma
lua

e a lembrança da tua
boca das tuas mãos
como arrepio

em minha pele.

Márcia Maia, in em queda livre

segunda-feira, junho 23, 2008

Não, não é cansaço...


Não, não é cansaço...
É uma quantidade de desilusão
Que se me entranha na espécie de pensar.
É um domingo às avessas
Do sentimento,
Um feriado passado no abismo...

Não, cansaço não é...
É eu estar existindo
E também o mundo,
Com tudo aquilo que contém,
Como tudo aquilo que nele se desdobra
E afinal é a mesma coisa variada em cópias iguais.

Álvaro de Campos

quarta-feira, junho 18, 2008

O mar


Depois de algum tempo fora, abri o correio
e tirei o mar de dentro da caixa. As algas
acumulavam-se por entre cartas e publicidade;
e uma onda rebentou nas minhas mãos quando
separei a água e o céu, e a linha do horizonte
me apareceu sob uma espuma de pássaros.


Nuno Júdice

sexta-feira, junho 13, 2008

Fernando Pessoa : 120 anos


Não: devagar.
Devagar, porque não sei
Onde quero ir.
Há entre mim e os meus passos
Uma divergência instintiva.
Há entre quem sou e estou
Uma diferença de verbo
Que corresponde à realidade.

Devagar…
Sim, devagar…
Quero pensar no que quer dizer
Este devagar…
Talvez o mundo exterior tenha pressa demais.
Talvez a alma vulgar queira chegar mais cedo.
Talvez a impressão dos momentos seja muito próxima…

Talvez isto tudo…
Mas o que me preocupa é esta palavra devagar…
O que é que tem que ser devagar?
Se calhar é o universo…
A verdade manda Deus que se diga.
Mas ouviu alguém isso a Deus?


Álvaro de Campos

sexta-feira, junho 06, 2008

Cirque du Soleil - Alegría

Para me desculpar pela minha falta de assiduidade nos vossos blogs, deixo um mix do espectáculo Alegria do Cirque du Soleil. Alegria para todos vós! Volto lá para o fim da próxima semana.

segunda-feira, junho 02, 2008

eternidade




eternidade
dura
o
instante
em que
te abraço
assim
distante

ilusório
contorno
do espaço

não há
tempo

cansaço

mjm

[Saudades, baby...]

terça-feira, maio 27, 2008

Plateia



Não sei quantos seremos, mas que importa?!
Um que só fosse, e já valia a pena.
Aqui, no mundo, alguém que se condena
A não ser conivente
Na farsa do presente
Posta em cena!

Não podemos mudar a hora da chegada,
Nem talvez a mais certa,
A da partida.
Mas podemos fazer a descoberta
Do que presta
E não presta
Nesta vida.

E o que não presta é isto, esta mentira
Quotidiana.
Esta comédia desumana
E triste,
Que cobre de soturna maldição
A própria indignação
Que lhe resiste.


Miguel Torga


[Porque nunca devemos perder o direito à indignação...]

quarta-feira, maio 21, 2008

Que quer dizer a mágoa sempre que se deixa



Que quer dizer a mágoa sempre que se deixa
fazer sentir, quando se afasta depois
de ocupar os únicos sítios? O que quero
dizer fica menos veloz. A evitar o azul branco
do céu sobre mim, a visitar esta terra só
de inverno. Seria inútil começar agora
uma conversa mais explícita, talvez
sobre o ritmo exigente da cidade em que estás
ou sobre a actividade quase perfeita das crianças
em redor. Prefiro calar-me, sentir o vento
que vem do mar, rir um pouco tropeçando
na madeira corroída.
De pouco serve escutar assim as vozes
já tão cansadas, antes a cuidadosa escolha
das tábuas a pôr na casa vazia. Depois
falaste-me de um eco, de um barco inclinando-se,
da casa que não tens.
Esgota-se o que mais falta. Que vamos
dizer? Está bem amo-te. E ao fogo
acabando na cinza, à manhã que não existe.

Helder Moura Pereira

domingo, maio 18, 2008

Quidam - Deixem o sonho entrar...




Quidam, a nameless passerby, a solitary figure lingering on a street corner, a person rushing past, a person who lives lost amidst the crowd in an all-too-anonymous society.

Will I ever have the courage of my indignation?

I would have wanted not to die. I would have wanted never to grow up.

I would have wanted to rend my soul.

I would have wanted to unearth all buried grief.

My wish is that you be loved madly.

I would have loved to scratch the slick surfaces of our good intentions with a coarse voice.




Do programa oficial de Quidam - Cirque du Soleil. Não percam o sonho sob o Grand Chapiteau.

quinta-feira, maio 15, 2008

Agradecimentos




Deixo esta flor para agradecer os mimos que me têm sido dados. À Gi que atribuiu a este blogue o selo Arte y Amistad, o meu reconhecimento não só pela lembrança mas pela beleza que espalha no seu espaço.




À Nuvem que atribuiu ao Na dualidade da cor o selo "Este blog faz a diferença", agradeço do coração a lembrança e a amizade.




Deixo estes prémios para todos os que aqui passam e me têm brindado com a sua presença e amizade. A Mateso e a CNS fizeram-me um desafio ao qual respondo, lá no outro lado.

domingo, maio 11, 2008

Veredas



Nada sei dos caminhos da água,
e da sede da terra lembro pó,
as ervas secas
que levantam os meus passos.


Nada sei das veredas da planície
que se cruzam,
quando o Sol bate meio-dia.


Sei que nas areias, mortas, do deserto,
só o vento
vem fazer-me companhia,
e que, na longa secura da jornada,
um fio de água
me desperta a alegria.


Frescura fugidia,
quase nada...

Manuel Filipe

terça-feira, maio 06, 2008

Pretextos para fugir do real


A uma luz perigosa como água
De sonho e assalto
Subindo ao teu corpo real
Recordo-te
E és a mesma
Ternura quase impossível
De suportar
Por isso fecho os olhos
(O amor faz-me recuperar incessantemente o poder da
provocação. É assim que te faço arder triunfalmente
onde e quando quero. Basta-me fechar os olhos)
Por isso fecho os olhos
E convido a noite para a minha cama
Convido-a a tornar-se tocante
Familiar concreta
Como um corpo decifrado de mulher
E sob a forma desejada
A noite deita-se comigo
E é a tua ausência
Nua nos meus braços


Experimento um grito
Contra o teu silêncio
Experimento um silêncio
Entro e saio
De mãos pálidas nos bolsos


Alexandre O'Neill

sexta-feira, maio 02, 2008

Cavalo branco


branco
riscado no verde
cruza sombras num galope
no fremir de asa branca
crepita o bosque fremente
desse fogo que não arde
no restolho esvoaçante

corre
corcel libertado
cruza o manto de verdura
corre livre
enfim liberto
e ao vento o peito aberto
traz ao bosque outra frescura

corre
mítico unicórnio
e que ao som do teu tropel
floresça este vergel
brotem fontes de água pura

alado cavalo branco
trazes asas de luar
e dourar de cada estrela
nesse louco cavalgar.

Imagem e poema de Jorge Castro


O livro mais recente de Jorge Castro, Poemas de Menagem, inclui poemas dedicados:
"a um poeta
a um pintor
a um amigo
a alguém que cruzou os céus comigo
(...) "


Teve a simpatia e a amizade de me dedicar este poema. Obrigada, Jorge!

domingo, abril 20, 2008

recaída



nada mudou. caminho em círculos.
à mais efémera alegria
sobrevirá já que o persigo
o caos talvez nas manhãs frias

do outono inexistente e azul
ou nas notas falsas de um blues

nordestinado ao som da lua
cheia. mentiras de poeta.
perdida há muito em meio à bruma

desaprendi de ver. de crer.
de chorar? não. e de morrer?

Márcia Maia


[Lá, no outro lado, está o meu post do 25 de Abril e a despedida até Maio.]

terça-feira, abril 15, 2008

Dentro da árvore



Por entre os ramos e as sombras sem tristeza
em claro e sonâmbulo vagar
mais baixo do que o dia com suas lâmpadas de espuma
em abóbadas de sombra entre o verde e a cinza.

Era a terra do sono e da solidão e da partilha
e a respiração da ausência. O destino
era próximo da mesa da folhagem, a sede
calma. E o sentido era um sonho
que se encarnava num flanco aberto.

Porque nascíamos em núpcias transparentes
com o ar adormecido num meio dia completo.
Porque no fundo escuro amávamos a altura verde
e recebíamos a frescura de uns dedos ignorados.

António Ramos Rosa

quinta-feira, abril 10, 2008

O lugar da casa


Uma casa que fosse um areal
deserto; que nem casa fosse;
só um lugar
onde o lume foi aceso, e à sua roda
se sentou a alegria; e aqueceu
as mãos; e partiu porque tinha
um destino; coisa simples
e pouca, mas destino:
crescer como árvore, resistir
ao vento, ao rigor da invernia,
e certa manhã sentir os passos
de abril
ou, quem sabe?, a floração
dos ramos, que pareciam
secos, e de novo estremecem
com o repentino canto da cotovia.




Eugénio de Andrade

segunda-feira, abril 07, 2008

Aprender com as palavras a substância mais nocturna



Aprender com as palavras a substância mais nocturna
é o mesmo que povoar o deserto
com a própria substância do deserto
Há que voltar atrás e viver a sombra
enquanto a palavra não existe
ou enquanto ela é um poço ou um coágulo do tempo
ou um cântaro voltado para a própria sede
talvez então no opaco encontremos a vértebra inicial
para que possamos coincidir com um gesto do universo
e ser a culminação da densidade
Só assim as palavras serão o fruto da sombra
e já não do espelho ou de torres de fumo
e como antenas de fogo nas gretas do olvido
serão inicialmente matéria fiel à matéria


António Ramos Rosa

quarta-feira, abril 02, 2008

estação


Muita vez vim esperar-te e não houve chegada.
De outras, esperei-me eu e não apareci
embora bem procurado entre os mais que passavam.
Se algum de nós vier hoje é já bastante
como comboio e como subtileza
Que dê o nome e espere. Talvez apareça

Mário Cesariny

quinta-feira, março 27, 2008

Aos meus amigos


Disseram-me que, de manhã,
se ouve o Tejo todo,
e que as pessoas transportam em
si aquela imensidade vasta,
como quem é feito de História
e não sabe porquê

disseram-me que o tempo não
volta ao lugar onde nasceu, e
que os amigos que se perdem são
como o areal à volta da minha casa:

os retalhos, as migalhas, a presença
sempre ausente das águas em
combustão

e a sensação de que sempre foi assim,
com aquelas mesmas pessoas,
com aqueles mesmos rostos,
por dentro da História
e com o Tejo debaixo dos braços


Jorge Vicente


domingo, março 23, 2008

Praia



Na luz oscilam os múltiplos navios
Caminho ao longo dos oceanos frios


As ondas desenrolam os seus braços
E brancas tombam de bruços


A praia é lisa e longa sob o vento
Saturada de espaços e maresia


E para trás fica o murmúrio
Das ondas enroladas como búzios.



Sophia de Mello Breyner Andresen

terça-feira, março 18, 2008

Poema no domingo de Páscoa



No domingo de Páscoa
vi um cego a almoçar num restaurante.
Levava o garfo à boca, e entretanto sorria,
candidamente,
como só os cegos sabem sorrir.
Comia frango, e ao servir-se do garfo ora trazia
comida nova, ora coisa nenhuma,
ora tendões e peles já antes mastigados,
ora tudo junto,
dependurado de qualquer maneira,
sorrindo sempre, candidamente.


Eu então levantei-me, e assim mesmo,
de sapatos castanhos,
calças e casaco da mesma cor,
alto, magro e bastante calvo,
aproximei-me do cego
e disse-lhe imperativamente:
- Abre os olhos!


Que ridículo!
Uma coisa que só aos deuses pertence.




António Gedeão

[ Deixo a amarga ironia de António Gedeão. Volto para a semana. Boa Páscoa a quem passa! ]

sexta-feira, março 14, 2008

um dia a manhã limpa perturba



um dia a manhã limpa perturba
o brilho molhado da boca - alastra
cicatrizando a fonte maligna do sangue


a fala ergue-se clara - sem dor
o tronco da árvore reverdece e
o mistério do voo dos pássaros sobe
à raiz viva do tempo - húmus


seiva fogo fundem lentamente - poeira
de lume vibrando
árvore volátil nascida do fundo da água
intensa - de novo
a respiração




Al Berto


segunda-feira, março 10, 2008

Da alma dos gatos


há um verde de sabedoria intensa
que atravessa penumbras do meu espaço
através do olhar da minha gata

- que não é minha
pois só ela se possui –

(…)

deve ser bom ser-se gato
olhar e ver através de um mutável olhar todo verde
a ironia ou o desencanto a escoarem-se
pela ponta da cauda
sem permanecerem viciosas por baixo da pelagem
ronronar sempre que nos apetecer

e
ainda assim
permanecer sempre gato

inexorável e intransigentemente gato.


Jorge Castro

quarta-feira, março 05, 2008

Reflexos



Olho-te pelo reflexo
Do vidro
E o coração da noite

E o meu desejo de ti
São lágrimas por dentro,
Tão doídas e fundas
Que se não fosse:

o tempo de viver;
e a gente em social desencontrado;
e se tivesse a força;
e a janela ao meu lado
fosse alta e oportuna,

invadia de amor o teu reflexo
e em estilhaços de vidro
mergulhava em ti.

Ana Luísa Amaral

Lá, no outro lado, é Dia Internacional da Mulher.

sábado, março 01, 2008

Rosas frescas



Que melhor oração,
que maior ânsia
do que sorrir às rosas
da manhã;
pormos sua bela alma
em nossa alma;
desejar tudo com
sua fragrância!

Juan Ramón Jimenez

Alguém me ensinou a gostar deste poeta. Alguém me abriu um mundo de poesia. Hoje, sorrio às rosas da manhã.



terça-feira, fevereiro 26, 2008

Águas



Por vezes invoco águas que não são minhas,
mas delas não beberei, mesmo no pó.
Apenas o seu rumor,
que é a íntima voz duma eterna deriva,
ou a solidão das margens, erguidas ao alto,
me mata a sede.

São ardor discreto de sol nos seixos,
tremor de freixos,
esplendor secreto.

Manuel Filipe

Porque por vezes é demasiada a sede. E a urgência de frescura escorrendo nas mãos.




Actualização.

sexta-feira, fevereiro 22, 2008

Aguarela


a casa é uma aguarela
no clarão do crepúsculo


a casa e eu dentro dela
vagando na calma grande
de não estar à tua espera


Soledade Santos


[Actualização do post dos agradecimentos. Obrigada, Ad astra e Sam.]

terça-feira, fevereiro 19, 2008

Música, músicas...

A onda das cadeias está a passar (outra vez) pelos blogues. Esta é sobre um tema interessante: música. Mais precisamente "seis músicas que na minha juventude me tenham feito abanar o capacete". Eu gosto de música, por isso agradeço à Gi e à Mateso o desafio. Sempre gostei de "abanar o capacete" mas prefiro falar de músicos que, para mim, são referências eternas. E vão ser mais que seis...

Então vamos lá:

- Os portugueses:

José Afonso
Sérgio Godinho
Xutos e Pontapés

- Os brasileiros:

Chico Buarque
Maria Bethânia
Caetano Veloso
Elis Regina, a eterna

- Os de todo o mundo:

Simon e Garfunkel
Queen
Pink Floyd
Carlos Santana
Miles Davis
Jacques Brel, o meu ídolo maior.

E, deste último, deixo , para todos os que por aqui passam, a sua mais emblemática canção.




Jacques Brel, Ne me quitte pas

sexta-feira, fevereiro 15, 2008

Auto-retrato




Metade frágil, metade prepotente.
Metade competente, metade insegura.
Metade segura, metade hesitante.
Metade divertida, metade melancólica.
Metade sol, metade lua.
Metade verso, metade reverso.
Metade do rosto. Metade da alma.
A outra metade perde-se no labirinto de mim própria, nos esconderijos que cavo dentro de mim, como grutas concêntricas nas quais ninguém penetra. Nem eu.



"A outra metade",Setembro 2006


Sabes que não sou bem eu
perdida no nevoeiro.
Sou alguém que em si se dobra
desdobra
em camadas
pedaços do corpo inteiro.
Não sou eu
num todo exacto
quem hesita no caminho
como se em labirinto
fosse ele transformado.
É alguém a mim ligado
sem fio
nem arame de equilíbrio.
Talvez alguém desterrado
do seu país sentimento
ou só alguém deslocado
naquele dia
naquele momento.

Volto, sim
invento o sol
que me aquece os sentidos
e nos reflexos de mim
colo pedaços perdidos.

"País sentimento", Janeiro 2007



[A Ana Sofia desafiou-me para qualquer coisa como resumir a minha vida. A minha vida é algo muito desinteressante para contar aqui. Mas podem ficar com duas coisas que escrevi sobre mim... E não passo esta "maldade" :-) a ninguém. Mas podem levar a ideia, se quiserem.]

segunda-feira, fevereiro 11, 2008

Não tenhas medo


Não tenhas medo do amor. Pousa a tua mão
devagar sobre o peito da terra e sente respirar
no seu seio os nomes das coisas que ali estão a
crescer: o linho e genciana; as ervilhas-de-cheiro
e as campainhas azuis; a menta perfumada para
as infusões do verão e a teia de raízes de um
pequeno loureiro que se organiza como uma rede
de veias na confusão de um corpo. A vida nunca
foi só Inverno, nunca foi só bruma e desamparo.
Se bem que chova ainda, não te importes: pousa a
tua mão devagar sobre o teu peito e ouve o clamor
da tempestade que faz ruir os muros: explode no
teu coração um amor-perfeito, será doce o seu
pólen na corola de um beijo, não tenhas medo,
hão-de pedir-to quando chegar a primavera.

Maria do Rosário Pedreira



Eu não tenho medo. Escuto o coração da terra. Tu tens?

domingo, fevereiro 10, 2008

Tenho que agradecer

...à Gi que atribuiu a este blog o selo do Blog com Boas Energias




à Nuvem que deu ao "Na dualidade da cor" o prémio




à A vida e à Ad astra que acham que



à Ana Sofia e ao Sam que dizem que



e, novamente ao Sam que deu ao Na dualidade da cor o prémio da amizade virtual



A todos estes blogs agradeço do coração e peço mil desculpas por não continuar as cadeias. Seria impossível escolher. Todos os que aqui passam são tudo isto e muito mais. Para todos vão estes prémios e o meu obrigada.