quinta-feira, março 27, 2008

Aos meus amigos


Disseram-me que, de manhã,
se ouve o Tejo todo,
e que as pessoas transportam em
si aquela imensidade vasta,
como quem é feito de História
e não sabe porquê

disseram-me que o tempo não
volta ao lugar onde nasceu, e
que os amigos que se perdem são
como o areal à volta da minha casa:

os retalhos, as migalhas, a presença
sempre ausente das águas em
combustão

e a sensação de que sempre foi assim,
com aquelas mesmas pessoas,
com aqueles mesmos rostos,
por dentro da História
e com o Tejo debaixo dos braços


Jorge Vicente


domingo, março 23, 2008

Praia



Na luz oscilam os múltiplos navios
Caminho ao longo dos oceanos frios


As ondas desenrolam os seus braços
E brancas tombam de bruços


A praia é lisa e longa sob o vento
Saturada de espaços e maresia


E para trás fica o murmúrio
Das ondas enroladas como búzios.



Sophia de Mello Breyner Andresen

terça-feira, março 18, 2008

Poema no domingo de Páscoa



No domingo de Páscoa
vi um cego a almoçar num restaurante.
Levava o garfo à boca, e entretanto sorria,
candidamente,
como só os cegos sabem sorrir.
Comia frango, e ao servir-se do garfo ora trazia
comida nova, ora coisa nenhuma,
ora tendões e peles já antes mastigados,
ora tudo junto,
dependurado de qualquer maneira,
sorrindo sempre, candidamente.


Eu então levantei-me, e assim mesmo,
de sapatos castanhos,
calças e casaco da mesma cor,
alto, magro e bastante calvo,
aproximei-me do cego
e disse-lhe imperativamente:
- Abre os olhos!


Que ridículo!
Uma coisa que só aos deuses pertence.




António Gedeão

[ Deixo a amarga ironia de António Gedeão. Volto para a semana. Boa Páscoa a quem passa! ]

sexta-feira, março 14, 2008

um dia a manhã limpa perturba



um dia a manhã limpa perturba
o brilho molhado da boca - alastra
cicatrizando a fonte maligna do sangue


a fala ergue-se clara - sem dor
o tronco da árvore reverdece e
o mistério do voo dos pássaros sobe
à raiz viva do tempo - húmus


seiva fogo fundem lentamente - poeira
de lume vibrando
árvore volátil nascida do fundo da água
intensa - de novo
a respiração




Al Berto


segunda-feira, março 10, 2008

Da alma dos gatos


há um verde de sabedoria intensa
que atravessa penumbras do meu espaço
através do olhar da minha gata

- que não é minha
pois só ela se possui –

(…)

deve ser bom ser-se gato
olhar e ver através de um mutável olhar todo verde
a ironia ou o desencanto a escoarem-se
pela ponta da cauda
sem permanecerem viciosas por baixo da pelagem
ronronar sempre que nos apetecer

e
ainda assim
permanecer sempre gato

inexorável e intransigentemente gato.


Jorge Castro

quarta-feira, março 05, 2008

Reflexos



Olho-te pelo reflexo
Do vidro
E o coração da noite

E o meu desejo de ti
São lágrimas por dentro,
Tão doídas e fundas
Que se não fosse:

o tempo de viver;
e a gente em social desencontrado;
e se tivesse a força;
e a janela ao meu lado
fosse alta e oportuna,

invadia de amor o teu reflexo
e em estilhaços de vidro
mergulhava em ti.

Ana Luísa Amaral

Lá, no outro lado, é Dia Internacional da Mulher.

sábado, março 01, 2008

Rosas frescas



Que melhor oração,
que maior ânsia
do que sorrir às rosas
da manhã;
pormos sua bela alma
em nossa alma;
desejar tudo com
sua fragrância!

Juan Ramón Jimenez

Alguém me ensinou a gostar deste poeta. Alguém me abriu um mundo de poesia. Hoje, sorrio às rosas da manhã.