segunda-feira, julho 28, 2008

O guarda-chuva


Nas manhãs de Inverno
o homem transpunha a porta
e, sob a asa negra do guarda-chuva,
transportava a solidão.

No comboio,
ela entrava de roldão
e em cada rosto se estampava;
no trabalho,
por onde passeasse a sua vida morta,
a solidão medrava.

À noite, apenas regressado,
fechava a asa,
e deixava de novo a solidão
à solta,
pela casa.


Manuel Filipe, in Nas Palmas da Noite

terça-feira, julho 22, 2008

Abrigo


Abrigo-me de ti
de mim não sei
há dias em que fujo
e que me evado

há horas em que a raiva
não sequei
nem a inveja rasguei
ou a desfaço

Há dias em que nego
e outros onde nasço

há dias só de fogo
e outros tão rasgados

Aqueles onde habito com tantos
dias vagos.


Maria Teresa Horta

quinta-feira, julho 17, 2008

Guarda a manhã


Guarda a manhã
Tudo o mais se pode tresmalhar

Porque tu és o meio da manhã
O ponto mais alto da luz
Em explosão

Daniel Faria

domingo, julho 13, 2008

Saudades




Tenho saudades hoje
De coisas simples

Um bocado de corda p´ra saltar
Dois berlindes
Um aro de bicicleta e um ferro
Um carro de linhas, sabão, elástico
Um prego grande
Uma meia velha cheia de trapos
Um grão-de-bico um pedacinho de tecido
Um biscoito frito
O doce na côdea humedecida na boca
Uma fita vermelha no pescoço

Hoje tenho saudades dessas e doutras
Simples… simples coisas

Um cabelo entrançado em duas
Um bibe branco…a mala de cartão
O cheiro de borracha e tinta
O quadro de artista plástico
Num mata-borrão
E no papel dobrado em dois
As formas fabulosas dum borrão

Hoje as saudades crescem-me
Saudades de coisas simples
As coisas afinal que me deste…vida

O cheiro que a terra tinha então
O sabor diferente em cada fruto
Joelhos esfolados lambidos a cuspo
A cópia rigorosa da caligrafia
A caneta de aparo
O tinteiro de loiça no buraco
O beijo trocado no banco do quintal
A cama de ferro de lençóis de linho
A palha solta do colchão riscado
Aquela tarde que não acabava
O verde mais verde que havia num prado

Hoje, nem eu sei…
Ficou-me uma saudade…

Do mar que era de cheiro intenso
Das covas de areia até ficar tapado
A bicicleta com dois, três e quatro
E a lama…a terra suja no vestido
E o vento molhando de maresia
E a chuva trespassando a alma
E os rios que corriam devagar
E os rios sempre quase parados

Hoje, se continuo assim escrevendo
Hoje rebento de saudades


terça-feira, julho 08, 2008

Penélope



Talvez o olhar negro e animal
que se afunda,
ressuscita, em cada vaga,
talvez o cão, o arco, a aljava,
- guardiães inúteis da cal -
reconheçam minha mão,
talvez um beijo...

Talvez agora desfaças o novelo,
no qual enrolas,
desenrolas,
o desejo.

Manuel Filipe

quarta-feira, julho 02, 2008

a carta








enquanto a carta permanece fechada,
todas as notícias são possíveis;
todas as esperanças, legítimas


tu és a carta
eu sou o destino
tu és o medo
eu sou a trincheira
tão densas são as palavras
tão dura é a verdade
que nos perdemos há tanto
na última cedilha
no último acento
sem sentido

chora o vazio
dor
é mesmo dor o que sinto

na encruzilhada
emaranhada e traiçoeira dos escritos
jorram os sons aflitos
da falta de rumo
dos ventos contrários
perdidos na sedução adiada
perdidos na sedução adiada
nesta tentação de não deitar contas à vida
nesta vocação desesperada para o pior de tudo

lembras-te da última carta?
estava vazia!
sei-o eu
sabe-lo tu
sabem-no todos os homens que se despenham
verticalmente
no fundo azul de um envelope distante
verticalmente
como quem se suicida impunemente
na sede do mar
que se sorve
adiada
em cada linha em branco deixada por escrever

sabe-lo tu
e sei-o eu
mas as linhas do teu corpo
só eu as leio

só eu as leio

Jorge Casimiro